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Respeito à autonomia do paciente e consentimento livre e esclarecido: uma abordagem principialista da relação médico-paciente.

 
 
Almeida, José Luiz Telles de.  

 

Respeito à autonomia do paciente e consentimento livre e esclarecido: uma abordagem principialista da relação médico-paciente.

 

[Doutorado]

 

Fundação Oswald

 

Capítulo 1

Processo Histórico da Afirmação do Princípio de Respeito à Autonomia do Paciente na Ética Médica

O respeito aos princípios de respeito à autonomia do paciente e do consentimento livre e esclarecido não foi parte integrante da história da medicina, da experiência clínica e da educação médica até, pelo menos, o início de nosso século. Quais fatores relativizaram o princípio clássico da beneficência e determinaram a emergência do princípio de respeito à autonomia do paciente?

Nesse capítulo inicial buscaremos caracterizar a conformação da ética médica hipocrática, onde o princípio de beneficência justificou a intervenção no corpo do paciente sem seu consentimento. Baseados na ética hipocrática e em uma autoridade crescente junto à sociedade, os médicos sempre tiveram como base para interpretação e decisão clínica seus próprios critérios. Os pacientes eram e, em muitos casos ainda são, tratados como crianças, incapazes de cuidar de si mesmas. O paternalismo médico somente será questionado quando se inicia um processo mais geral de valorização e afirmação dos direitos individuais a partir do início deste século. Neste processo, a ética médica tradicional enfrentará os primeiros questionamentos no âmbito jurídico-legal. Apesar dos processos legais reconhecerem o direito historicamente constituído à autodeterminação do indivíduo, veremos que o debate jurídico não teve grande impacto no ethos médico tradicional.

1.1 - Da Ética Médica Hipocrática à Ética Médica Contemporânea

Os trabalhos de Hipocrátes e de seus seguidores constituíram um marco na história da medicina ocidental. Primeiro porque então as doenças começaram a ser descritas de forma objetiva, privilegiando-se a observação detalhada do paciente e renunciando-se a qualquer explicação causal de cunho religioso. As doenças passaram a ser entendidas como uma luta entre a força curativa da natureza e as causas que perturbam o estado fisiológico. De acordo com a teoria hipocrática, o "homem está sujeito às mesmas forças físicas que o cosmos e um entendimento do corpo, na relação com ele mesmo e com o meio ambiente, provê os meios para controlá-lo quando algo acontece de errado" (Nutton, 1996: 23).

A racionalidade e a objetividade para a explicação das doenças no Corpus Hipocraticum (10). são relevantes, pois, na mesma época, a medicina religiosa era muito popular e nela dominavam as concepções mágicas das doenças e das terapêuticas (Nutton, 1996).

A partir de Hipócrates, ainda, fundamentam-se as bases da ética médica tradicional ordenadas no Juramento Hipocrático (11) e nos livros deontológicos ou normativos contidos no Corpus Hipocraticum. No juramento, o médico comprometia-se a usar a medicina em benefício dos pacientes; a manter confidencialidade sobre os fatos ocorridos com seus pacientes; a conservar em segredo os conhecimento médicos, exceto para os seus pares; a não manter relações sexuais com os pacientes; e a não administrar substâncias que poderiam levar à morte ou provocar efeitos abortivos (Souza, 1981; Keyserlingk, 1998).

Além de instituir, pela primeira vez, um código de normas de conduta, o juramento hipocrático configurou-se parâmetro para os próprios médicos avaliarem sua prática.

Com a cristianização do Ocidente o próprio juramento foi cristianizado. O fator de cura não mais residia na Natureza mas em Deus. A premissa do pensamento cristão era o profundo espírito de caridade e, antes de indicar a assistência ou a terapêutica, ressaltava-se, tanto ao doente quanto àquele que o cuidava, "que tudo se inspira no amor de Cristo, o qual se traduz no amor ao próximo" (Lucioni, s/d: 39).

O cristianismo adaptou os termos do juramento hipocrático sem alterar, contudo, a estrutura fundamental do código ético. Ou seja, o caráter sacerdotal do médico foi mantido e, ainda, "a ética médica se converteu no paradigma de toda a ética ‘sacerdotal’ [outorgando] universalidade à ética hipocrática, dotando-a de vigência ao largo de muitos séculos" (Guillén, 1989: 83).

A caridade cristã trouxe conseqüências importantes para a organização social da prática médica. Como todos os homens são irmãos e o amor ao próximo constitui um mandamento fundamental, foi fundado um número considerável de instituições pelas ordens religiosas que exerciam a caridade cuidando dos doentes, feridos, chagados, peregrinos, desvalidos e miseráveis (12).

No início da Idade Média até o século XII, as interações entre os médicos cristãos e os pacientes se "regeram por três crenças inter-relacionadas: a) os pacientes devem honrar os médicos, porque sua autoridade provem de Deus; b) os pacientes devem ter fé em seu médico e; c) devem prometer obediência" (Katz, 1989:47).

O "racionalismo" grego só "renasceu" a partir do século XII quando, após um período considerável de crise da Igreja católica, os textos gregos, traduzidos pelos árabes (13), chegaram à Europa Ocidental e passaram a ser traduzidos para o latim. Ao longo dos séculos XII e XIII, universidades européias foram criadas e os textos clássicos da Antigüidade foram objetos de estudo e de crescente inquietação científica (Lucioni, s/d.; Souza, 1981).

A abertura das faculdades de medicina nas universidades medievais, a partir do século XII, de um lado, e a promulgação das primeiras leis que regulamentavam o exercício da prática médica pelos candidatos, por outro, foram fatos importantes para o início do processo de profissionalização (14) da medicina. Esses estatutos legitimavam a prática médica perante a sociedade, pois os médicos baseavam-se num saber que somente os "iniciados" poderiam adquirir e, ainda, lhes garante a proteção legal pelo Estado, (15) garantia do monopólio profissional.

Com a legitimação social da medicina aliada à incorporação da racionalidade científica e a mudança do paradigma da medicina em fins do século XIX - quando as investigações médicas começaram a identificar as doenças, seus sinais e sintomas, com as lesões anatômicas, instituindo a medicina anatomopatológica (Foucault, 1994) - o sistema médico consolidou-se. O ponto de vista segundo o qual o leigo é incapaz de avaliar seu próprio problema e de resolvê-lo ganhou força portanto.

O princípio primário da ação médica assenta-se no estabelecimento de relações de confiança e respeito entre o médico e o paciente que, segundo Entralgo, seriam "rigorosamente imprescindíveis para uma prática humana da arte de curar" (Entralgo, 1983:20). A confiança do paciente baseia-se, essencialmente, na convicção de que o médico detém os conhecimentos necessários à resolução de seu problema e o respeito do médico ao paciente é fundamentado nos princípios éticos da beneficência e da não-maleficência.

O desenvolvimento histórico da medicina, portanto, conferiu ao médico autonomia técnica na tomada de decisão junto ao paciente, autonomia baseada tanto no domínio de um conhecimento específico quanto em sua legitimidade social. O princípio de beneficência, assumido como absoluto pelo médico, segundo a tradição hipocrática, não comportava relações compartilhadas de decisão com o paciente. Como assinala Katz, "[a] idéia de que os pacientes possuem direito a um pouco de liberdade, a partilhar as responsabilidades da decisão com seus médicos, nunca fez parte da essência da medicina" (Katz, 1989:36).

O questionamento da relação paternalista do médico com o paciente e a emergência dos princípios de respeito à autonomia e de consentimento livre e esclarecido somente surgiu a partir de 1914, quando tribunais norte-americanos começaram a interpretar os casos de intervenção no corpo do paciente sem seu consentimento como uma violação do direito do indivíduo à autodeterminação. Buscaremos demonstrar que esse reconhecimento de direitos específicos ao paciente vem no bojo do processo histórico de construção da modernidade nas sociedades ocidentais e dará início a um processo de questionamento do ethos médico tradicional.

1.2 - Respeito à autonomia do paciente e consentimento livre e esclarecido na perspectiva histórica da linguagem dos direitos

No debate político, ético e filosófico, a secularização do mundo ocidental constitue, segundo Marramao (1994) um conceito chave para o entendimento das profundas transformações históricas que culminaram com a Idade Moderna.

Ao buscar fazer uma reconstrução "genealógica" da categoria secularização, Marramao afirma que o termo foi aplicado, inicialmente, no âmbito político-jurídico. Seu núcleo originário residia no direito canônico e servia para designar o ato jurídico que reduziu ou expropriou os domínios e as propriedades temporais da Igreja. Neste sentido, "a expressão remete a um processo gradual de expulsão da autoridade eclesiástica do âmbito de domínio temporal" (Marramao, 1994:18).

O processo de afirmação de uma jurisdição secular, isto é, laica e estatal, sobre amplos setores da vida social, até então sob o comando da Igreja, acabam por colocar o agir humano diante da responsabilidade e da escolha. O indivíduo em sociedade, por conseguinte, assumiu, gradativamente, um estatuto moral, ou, nas palavras de Arendt, "a história demonstra que os homens modernos não foram arremessados de volta a este mundo, mas para dentro de si mesmos"(Arendt, 1995:266).

Em relação ao termo indivíduo, por sua vez, Dumont ressalta dois possíveis sentidos. O primeiro é o de sujeito empírico, manifesto pela palavra, pelo pensamento e pela vontade. Representa amostra indivisível da espécie humana, tal como o observador encontra em todas as sociedades. O segundo sentido é aquele relativo ao ser moral, independente, autônomo e, assim, essencialmente não social, tal como se encontra, sobretudo, em nossa ideologia moderna do homem e da sociedade (Dumont, 1993). A noção de indivíduo investido de direitos morais representa, sob este ponto de vista, uma construção da modernidade.

Ao traçar as etapas de constituição ou do desenvolvimento do indivíduo enquanto ser moral e autônomo (indivíduo dentro-do-mundo), Dumont constata que "a liberdade de consciência constitui o primeiro, cronologicamente, de todos os aspectos da liberdade política e a raiz de todos os demais" (Dumont, 1993:86).

Pode-se afirmar, mesmo, que a concepção individualista do homem acaba por conjugar uma série nova de categorias sócio-políticas, inaugurando, assim, a era da linguagem dos direitos e deveres individuais e coletivos (Guillén, 1994; Bobbio, 1992).

Os fundamentos da teoria moderna dos direitos humanos foram primeiramente propostos por John Locke através da publicação de "Two Treatises on Civil Government", em 1690. Sua tese sobre o estado natural e o pacto social também fora defendida por Thomas Hobbes na obra "O Leviatã" (1651) que, no entanto, pretendia justificar o absolutismo. Para Locke, no estado natural os homens nascem livres e racionais. Por conseguinte, os homens seriam iguais, independentes e governados pela razão. Para Bobbio, a partir de Locke "pode-se compreender como a doutrina dos direitos naturais pressupõe uma concepção individualista da sociedade e, portanto, do Estado, continuamente combatida pela mais sólida e antiga concepção organicista, segundo a qual a sociedade é um todo, e o todo está acima das partes" (Bobbio, 1992:59).

Locke, como o ressalta Guillén (1994), define o conteúdo de cada um dos direitos que o homem deve ter em sociedade. A importância de sua obra deve-se a, pelo menos, três motivos. Em primeiro lugar, está o fato, até então inédito na história política, de se ter formulado uma tábua dos direitos civis e políticos: o direito à vida, o direito à saúde, o direito à liberdade de consciência e o direito de propriedade. Em segundo lugar, Locke afirma que esses direitos são individuais, ou seja, sua realização depende, única e exclusivamente, da iniciativa dos indivíduos. E, por último, considera que estes direitos impõem os nossos deveres para conosco mesmos, abdicando-se de qualquer justificação transcendente.

O projeto de modernização atribui a centralidade ao sujeito e a afirmação do direito de cada indivíduo criar livremente sua própria identidade. Isto não significa, no entanto, que a centralidade no indivíduo, estigmatizada como individualismo, resulte na "ausência de uma esfera pública e [a] representação do social como um conjunto desarticulado de indivíduos" (Bodstein, 1995: 55). Ao contrário, o movimento segue no sentido de incorporar os direitos do indivíduo no processo e da afirmação da possibilidade de convivência democrática em sociedades baseadas na liberdade e na autonomia de todos os seus membros.

Na metade do século XIX, meio século depois da Revolução Francesa, começou a configurar-se uma nova geração de direitos humanos, centrada na idéia de igualdade e de justiça. O objetivo desses novos direitos foi, de fato, o de corrigir as distorções da teoria liberal mediante a introdução de um princípio de igualdade redistributiva. Não se intencionava, todavia, anular a primeira tábua de direitos humanos, mas sim complementá-la com uma outra: aquela relativa aos direitos econômicos, sociais e culturais, "objetos de reivindicações que os movimentos sindicais e os partidos de esquerda realizaram ao longo da metade do século XIX" (Guillén, 1994: 35). Estes são direitos positivos, o sujeito coletivo é o Estado e só este pode colocá-los em prática. Trata-se, pois, "de pensar o Estado ou o poder político em sua função de viabilizar e proteger os direitos fundamentais dos indivíduos e considerar que a democracia moderna só existe quando ocorre o reconhecimento dos direitos básicos de cidadania" (Bodstein, 1995:68).

A primeira revolução, ocorrida na França, foi democrática, essa segunda revolução, social. Se a primeira defendia o Estado mínimo, a segunda lutava por instaurar um Estado máximo, vale dizer aquele Estado capaz de promover e proteger não só os direitos negativos mas também aqueles positivos, estabelecendo jornadas de trabalho dignas; proibindo o recrutamento de mulheres e crianças; exigindo salários decentes; protegendo os licenciados, os doentes, os aposentados, as viúvas etc. Surge, assim, a consciência do direito de todo ser humano à educação, à habitação, ao trabalho, ao subsídio de desemprego, à aposentadoria e à assistência sanitária.

Neste processo histórico de afirmação de direitos individuais e coletivos, portanto, foram desenvolvidos três tipos diversos de direitos humanos: a) os de 1ª geração (civis e políticos); os de 2ª geração (econômicos, sociais e culturais); e os de 3ª geração (ecológicos e das gerações futuras) (Guillén, 1994; Bobbio, 1992). Estes últimos entraram na pauta das sociedades ocidentais a partir da década de 60, quando grupos sociais organizados começaram a alertar para as consequências do desenvolvimento industrial sobre o meio ambiente, argumentando sobre os riscos à sobrevivência da vida humana e não humana no planeta.

A promulgação, pelas Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948, da Declaração dos Direitos do Homem, três anos após o término da Segunda Guerra Mundial e em reação aos horrores cometidos durante a mesma, dá início ao movimento no sentido de afirmar a universalidade dos direitos humanos. A Declaração tornou-se a base para um sistema de convenções e instrumentos, de mecanismos e garantias, destinado a proteger e promover os direitos da pessoa humana.

Quanto à assistência sanitária, contida no artigo 25 da Declaração, podem-se distinguir dois tipos de direitos sanitários: o primeiro relativo a um nível de vida que assegure saúde e bem-estar. O segundo propõe ajuda em caso de doença através de uma redistribuição econômica que assegure ao doente uma existência digna. Essa 2ª geração de direitos humanos tem a concepção de assistência sanitária como um direito oriundo do princípio de justiça.

Cabe destacar que os Direitos do Homem renunciam a qualquer fundamento teológico ou metafísico, comum ou explícito. Como o destaca Hottois, os Direitos do Homem são desprovidos de um fundamento comum a priori. Significa que constituem princípios acerca dos quais os homens se entendem na prática, isto é, deixando a cada um - indivíduo ou coletividade - a possibilidade, até a responsabilidade, de os alicerçar consoante a sua concepção de mundo e do bem (Hottois, 1990).

A Declaração dos Direitos do Homem é promulgada um ano após o término de outro evento de especial importância nos anais da lei e da ética biomédica: o Tribunal Militar Internacional, reunido na cidade de Nuremberg, que julgou os crimes de guerra cometidos pela Alemanha nazista.

O Tribunal de Nuremberg, em 9 de dezembro de 1946, julgou vinte e três pessoas, vinte das quais médicos, criminosos de guerra, devido aos brutais experimentos realizados em seres humanos. O Tribunal demorou oito meses para julgá-los. Em agosto de 1947 o próprio Tribunal divulgou as sentenças em um outro documento conhecido como Código de Nuremberg. Este documento é um marco na história da humanidade, pois pela primeira vez se estabeleceu uma recomendação internacional sobre os aspectos éticos relativos à pesquisa envolvendo seres humanos (16).

A autodeterminação do indivíduo foi o primeiro critério enunciado no Código de Nuremberg. Lê-se que "o consentimento voluntário do ser humano é absolutamente essencial. Isso significa que as pessoas que serão submetidas ao experimento devem ser legalmente capazes de dar consentimento; essas pessoas devem exercer o livre direito de escolha sem qualquer intervenção de elementos de força, fraude, mentira, coação, astúcia ou outra forma de restrição posterior; devem ter conhecimento suficiente do assunto em estudo para tomarem uma decisão"(Annas e Grodin, 1992:2). Esta sentença assumiu posição central no conjunto de enunciados de Nuremberg e foram invocados dez critérios que todos os médicos e cientistas deveriam aceitar e observar em experimentos que envolvam seres humanos: 1) o consentimento voluntário do ser humano é absolutamente essencial; 2) o experimento deve ser tal que produza resultados vantajosos para a sociedade, que não possam ser buscados por outros métodos de estudo, mas não podem ser feitos de maneira casuística ou desnecessariamente; 3) o experimento deve ser baseado em resultados de experimentação em animais e no conhecimento da evolução da doença ou outros problemas em estudo; 4) o experimento deve ser conduzido de maneira a evitar todo sofrimento e danos desnecessários ao sujeito da pesquisa, quer físicos, quer mentais; 5) não deve ser conduzido nenhum experimento quando existirem razões para acreditar que pode ocorrer morte ou invalidez permanente; 6) o grau de risco aceitável deve ser limitado pela importância do problema que o pesquisador se propõe resolver; 7) devem ser tomados cuidados especiais para proteger o participante do experimento de qualquer possibilidade de dano, invalidez ou morte, mesmo que remota; 8) o experimento deve ser conduzido apenas por pessoas cientificamente qualificadas; 9) o participante do experimento deve ter a liberdade de se retirar no decorrer do experimento; e 10) o pesquisador deve estar preparado para suspender os porcedimentos experimentais en qualquer estágio, se ele tiver motivos razoáveis para acreditar que a continuação do experimento provavelmente causará dano, invalidez ou morte para os participantes (Annas e Grodin, 1992:2).

Dessa maneira, apenas dois critérios, dentre os dez pronunciados, dizem respeito à autodeterminação. Os outros oito dependem, uns mais outros menos explicitamente, de uma razoável avaliação profissional tendo por critério os princípios de beneficência e de não-maleficência.

O Julgamento de Nuremberg é considerado um marco na adoção de princípios normalizadores da prática científica. Mas o mais perturbador no Julgamento de Nuremberg é que, ao longo dos cento e trinta dias de testemunhos, ficou claro que os experimentos mais cruéis tinham sido aprovados e levados a efeito por reconhecidas lideranças da profissão médica alemã, por catedráticos de universidades, por respeitados professores e pesquisadores de reputação internacional. Parece que propósitos eugenistas (17) estavam por trás das justificativas de se empreender tais experimentos (Proctor, 1992). Em face dessa constatação, em particular, o critério de que os bons médicos nunca, deliberadamente, devem provocar a morte ou o mal físico a qualquer ser humano - perderam a força de convencimento (Burt, 1996).

Houve consideráveis esforços, depois da guerra, dentro e fora da Alemanha, para proclamar que os médicos julgados em Nuremberg não eram cientistas respeitados e que os experimentos não faziam parte da chamada "boa ciência" ou da "ciência real". Os juizes, porém, não aceitaram esta argumentação e estabeleceram, como primeira linha de defesa contra possíveis barbáries futuras, o direito do indivíduo ou paciente à autodeterminação (Burt, 1996).

A lição dos juizes de Nuremberg foi a de não ser mais possível ter confiança na autoridade social do Estado ou de suas instituições. Em reforço a essa tese, no final da década de 60 o professor da Escola de Medicina da Universidade de Harvard, Henry K. Beecher, publicou um artigo mostrando serem comuns, na prática clínica norte-americana, abusos contra a saúde e a vida de pacientes submetidos à pesquisa científica (Beecher,1966). Isto apesar de já estarem firmados os princípios (não-maleficência, beneficência e consentimento esclarecido) para a proteção das pessoas participantes em pesquisas científicas no Código de Nuremberg. O professor demonstrou, também, acontecerem os abusos quase exclusivamente com indivíduos socialmente vulneráveis - prisioneiros, enfermos, doentes mentais, soldados ou minorias étnicas; violava-se, assim, outro princípio da bioética - o princípio da justiça ou equidade (Beecher, 1966: 1354-1360).

Por sua vez, as ações contra a negligência do médico começaram a chegar aos tribunais norte-americanos em meados do século XIX. E deflagraram o movimento de constituição dos direitos do paciente à informação e ao consentimento quando de sua relação com o médico e os serviços de saúde.

Com efeito, quando os casos de negligência médica chegavam aos tribunais, a questão do consentimento do paciente aparecia de forma incidental e rudimentar. Somente a partir dos anos 50 de nosso século é que a noção de consentimento vai ficar mais precisa e vai incorporar o componente da informação (Faden and Beauchamp, 1986).

Nesse processo de desenvolvimento do princípio de respeito à autonomia do paciente na perspectiva das leis, podem-se distinguir pelo menos três etapas: na primeira, sobressai a figura jurídica da negligência profissional ou imperícia (malpractice); uma segunda, dominada pela idéia de agressão (battery), entendida como intervenção realizada no corpo de outra pessoa sem o seu consentimento; e uma terceira em que se define mais claramente o conceito de consentimento esclarecido.

Estas figuras jurídicas são muito distintas entre si. Na negligência e na imperícia, por exemplo, não há necessidade de provar a voluntariedade para se as considerar delitos. Já na agressão, ocorre o contrário, isto é, a voluntariedade, ou não, deve ser devidamente documentada. A inobservância do princípio jurídico do consentimento esclarecido pode levar ao enquadramento de qualquer dos dois grupos. Em geral, no entanto, o desrespeito ao princípio do consentimento esclarecido costuma ser tipificado como imperícia ou negligência médica (Guillén, 1989).

Guillén relata que ao se analisarem as histórias clínicas dos grandes hospitais norte-americanos do século XIX, foi possível comprovar que os problemas referentes à informação e ao consentimento se concentraram, em aus maioria, no âmbito das intervenções cirúrgicas. São raros os casos afeitos ao exercício da medicina interna; e estes estavam relacionados à administração de medicamentos não desejados pelos doentes (Guillén, 1989).

O recurso à figura jurídica da negligência e não da agressão, nos casos julgados pelos tribunais desse período, demonstrava que a jurisprudência americana anteviu a capacidade de decisão do paciente mais como integrante de uma boa assistência médica do que um direito legal de autonomia do paciente (Pernick, 1982:1-35).

Nos anos finais do século XIX e nas duas primeiras décadas do século XX, os tribunais norte-americanos defenderam o direito do paciente à informação e à escolha. Mas o consentimento esclarecido ainda era considerado parte da missão do médico de buscar a máxima cooperação no processo terapêutico do paciente. Cabe ressaltar que muitos médicos norte-americanos pensavam que a informação e a tomada de decisões poderiam ser prejudiciais aos pacientes; e os tribunais, em geral, estiveram de acordo com elas (Guillén, 1989).

Katz cita, como exemplo da visão dos tribunais neste período, sentença pronunciada por um juiz norte americano em 1889, no caso "State versus Housekeeper", sobre o direito de consentir a uma determinada intervenção. Nesse caso, o juiz proclamou que se a pessoa "se submeteu voluntariamente à operação se dará por assentado seu consentimento, a menos que tenha sido vítima de uma representação falsa e fraudulenta" (Katz, 1989:118).

Esta interpretação ainda hoje pode ser utilizada no caso do paciente hospitalizado que estende o braço para a retirada de sangue para exame: este ato é interpretado como consentimento implícito ao procedimento, independente do esclarecimento do médico sobre os objetivos do exame (Veatch, 1995). O surgimento da AIDS está fazendo com que os exames para o diagnóstico só possam ser realizados se forem voluntário, ou com o consentimento expresso do paciente.

Na década de 1890, os tribunais americanos começaram a ser procurados por pacientes que denunciavam terem sido vítimas involuntárias de intervenções cirúrgicas. Acusavam seus médicos de agressão e não de negligência. De acordo com a legislação norte-americana, o delito de agressão se comete sempre que alguém atua intencionalmente sobre o corpo de outra pessoa sem a sua permissão. Segundo uma secular tradição jurídica, um médico, ao tratar um paciente sem o seu consentimento, pode cometer delito de agressão (exceto naqueles casos de urgência em que os desejos do paciente não podem ser conhecidos). Mas esta antiga tradição não havia sido ainda aplicada em casos relacionados ao consentimento do paciente, antes de 1889. O advento da anestesia neste período esteve relacionado com o aumento do número de casos levados aos tribunais, pois os médicos consideravam uma vantagem clínica ter o paciente desacordado e poder realizar qualquer intervenção sem qualquer resistência (Guillén, 1989).

Na mudança do século a Common Law norte-americana começou a estabelecer mais claramente o vínculo entre o delito de agressão técnica e a intervenção no corpo do paciente sem seu consentimento (Guillén, 1989). A natureza do consentimento, para se evitar o risco de agressão, todavia, ainda não estava muito detalhada na lei. Tal indefinição só veio a ser superada nos anos da Primeira Guerra Mundial, quando várias sentenças de tribunais norte-americanos foram delimitando o sentido do delito de agressão técnica por parte do médico (Guillén. 1989).

A sentença considerada marco histórico neste processo foi dada no ano de 1914 pelo juiz Benjamin Cardozo no caso "Schloendorf versus Society of New York Hospital". Nesse caso, "o médico retirou um fibroma depois que o paciente havia consentido a um exame abdominal sob anestesia, mas havia especificado ao médico que não autorizava cirurgia. Curiosamente o tribunal não considerou o caso uma violação do direito ao consentimento esclarecido, nem fez qualquer declaração sobre a informação necessária ao paciente para ele exercer seu direito à autodeterminação. Ainda assim, a sentença do Juiz Cardozo é largamente citada na literatura sobre consentimento esclarecido". (Faden and Beauchamp, 1986: 123).

Com a sentença do juiz Cardozo, renovou-se a doutrina jurisprudencial sobre agressão técnica, em resposta às novas condições técnicas e sociais do exercício da medicina. Segundo Katz, o juiz Cardozo, neste caso, situou o problema jurídico em seu contexto apropriado, ao afirmar que "[n]o caso que examinamos, a queixa não versa nada mais que negligência. É uma violação de direitos. <...> Toda pessoa adulta e em bom estado de saúde mental tem o direito a determinar o que há de se fazer com seu organismo; de modo que o cirurgião que opera sem o consentimento do paciente comete um assalto, uma violação e por isto deve pagar pelos danos" (Katz, 1989:121).

A partir de então, a lei norte-americana reconhecia não o direito de todo homem à autodeterminação, já consagrado há algum tempo, mas o direito do paciente à autodeterminação (Patient’s rights of selfdetermination) (Guillén, 1989). Essa expressão "selfdetermination" se tornou "a base ou justificação principal para o requerimento legal de consentimento esclarecido" ( Faden and Beauchamp, 1986:124).

No entanto, não houve mudança substantiva na concepção de que o consentimento esclarecido fazia parte do sucesso terapêutico. E sua inobservância, segundo os tribunais em geral, era "um descuido não intencional, inadvertido, um erro ocasional" (Katz, 1989:133). Tal fato se explicaria pela correspondência entre a profissão do médico e a profissão do advogado, pois "as relações destes com seus clientes não diferiam grande coisa das que existem entre os médicos e os pacientes. O ensino profissional dos juizes, <...> os induz a praticarem a virtude de manterem o menor diálogo possível sobre decisões com seus clientes" (Katz, 1989:133).

O período que se inicia nos anos 20 foi considerado como "a primeira onda da crise de imperícia", que chegaria a sua expressão máxima na década de 70 (Faden & Beauchamp, 1986: 82).

A expressão "consentimento esclarecido" foi utilizada pela primeira vez em 1957 (18), no estado da Califórnia-EUA, no julgamento do caso "Salgo versus Leland Stanford Jr. University-Broad of Tustees". Martin Salgo sofreu uma paralisia permanente como resultado de uma aortografia translombar. Processou seu médico alegando negligência na execução do ato cirúrgico e por não haver advertido sobre o risco de paralisia (Faden and Beauchamp, 1986). Graças a este caso se estabeleceu o dever de informar o paciente antes de sua decisão. Isto é, graças a este caso se entrou no mérito da qualidade da informação e no dever do médico de a fornecer. No entanto, o tribunal, neste caso, buscou equiparar dois critérios distintos. Pois, se dizia ser obrigação do médico o esclarecimento completo ao paciente sobre a sua situação clínica, acrescentava dever este mesmo esclarecimento ser dado com uma certa dose de discrição (Guillén, 1989). A posição de se buscar a equivalência de dois critérios opostos (esclarecimento completo e certa dose de discrição) mereceu críticas daqueles que estudam o tema. Para Katz, estes dois critérios "são conciliáveis unicamente no reino dos sonhos" (Katz, 1989:142) e para Faden & Beauchamp, a sentença seria um "esplendido arroubo de obscuridade" (Faden & Beauchamp, 1986: 126).

Apesar da sentença não oferecer ao médico nenhum critério para guiá-lo na dosagem de sua discrição, Guillén ressalta que esse caso teve importância por ter sido o primeiro a pleitear, ainda que de forma dúbia, o consentimento esclarecido como direito do paciente. E não, apenas, como estratégia de sucesso terapêutico do médico, ou seja, a critério da prática profissional (Guillén, 1989).

A substituição do critério da prática profissional pelo critério da pessoa ficou patente em 1969, no tribunal de Los Angeles - EUA, no caso "Berkey versus Anderson". O sr. Berkey havia consentido na realização de um mielograma com base nas informações dadas por seu médico, Dr. Anderson. Berkey perguntou-lhe se o exame de mielograma seria similar a um outro exame, um miograma, ao qual já se havia submetido. Seu médico respondeu-lhe que o mielograma era um procedimento diagnóstico e exploratório, que provocava desconforto menor quando o paciente era imobilizado em uma maca com temperatura resfriada. O médico, assim, deixou de dizer ao sr. Berkey ser necessária no mielograma, a punção espinhal, o que não ocorria com a miografia (Faden and Beauchamp, 1986).

A partir deste caso passou a se afirmar que ao paciente deve ser dada tanta informação quanto se faça necessária para uma tomada de decisão razoável sob o ponto de vista do paciente e não do médico. A Corte do caso Berkey enfatizou que "a relação médico-paciente tem caráter de confiança e, em todo tipo de relação de confiança, a lei impõe o dever de total informação" (Faden and Beauchamp, 1986: 128).

Tanto no caso Salgo quanto no de Berkey, a Corte enfrentou problemas complexos acerca da informação necessária ao paciente, particularmente no que diz respeito ao modo de informar sobre os riscos de determinada intervenção.

Após o caso Salgo, abriu-se a discussão sobre a questão da "discrição" profissional no ato de informar o paciente. Essa discrição baseava-se, unicamente, em critérios definidos pelo próprio médico. Desenvolveram-se controvérsias sobre a possibilidade de se reconciliar a prática tradicional do médico em informar seu paciente com o direito à autodeterminação do paciente.

A partir de 1972, três casos de negligência médica contribuíram para se deslocar o padrão de informação centrado nos critérios definidos pelo próprio médico para um outro centrado no paciente. O primeiro caso, Canterbury v. Spence, foi o mais influente neste sentido. No caso, o paciente passou por uma laminectomia, para aliviar uma forte dor na região lombar. Após a intervenção, o paciente desenvolveu uma grave paralisia. Ele não havia sido advertido que em cerca de 1% dos casos de laminectomia havia o risco de paralisia. Uma segunda intervenção cirúrgica falhou em atenuar a paralisia. No tribunal, sustentou-se que a informação sobre o risco de uma paralisia deveria ter sido dada ao paciente antes da primeira intervenção cirúrgica. De acordo com o juiz Spottswood Robinson, que proferiu a sentença, "o direito à autodeterminação do paciente estabelece os limites do dever de revelar. Este direito pode ser efetivamente exercido somente se o paciente possui informação suficiente para ser apto a uma escolha inteligente" (Apud. Faden and Beauchamp, 1986:133).

Os dois casos que se seguiram a esse (Cobbs v. Grant e Wilkinson v. Vesey) reafirmaram a necessidade de informação ao paciente como pré-requisito ao exercício de sua autodeterminação. E que as decisões deveriam contemplar "os valores do paciente e não exclusivamente determinações médicas" (Faden and Beauchamp, 1986:133).

Estes três casos estabeleceram firmemente a obrigação do médico em informar seu paciente sobre aspectos relativos ao diagnóstico, prognóstico (com e sem tratamento), às propostas terapêuticas, aos riscos inerentes ao tratamento e às terapêuticas alternativas, com seus respectivos riscos.

A doutrina legal do consentimento esclarecido, como ressaltam Faden e Beauchamp, não provocou grandes mudanças nas rotinas diárias da relação médico-paciente. Esses autores justificam essa constatação pelo fato de o "consentimento esclarecido na prática clínica ser primeiramente um problema ético e não uma questão legal" (Faden and Beauchamp, 1986:141-2).

No Brasil, a Constituição do país, promulgada em 1988, após intensos embates no processo constituinte, incorpora a saúde como direito do cidadão e dever do Estado. Nesta conquista, teve papel relevante a realização da VIII Conferência Nacional de Saúde, em 1986, que, pela primeira vez na história das Conferências nacionais, teve ampla participação da sociedade civil. Estabeleceram-se, por conseguinte, os direitos da população não só ao acesso aos diferentes níveis de assistência à saúde como também à sua participação na formulação das prioridades na área da saúde através de mecanismos legais.

Neste contexto se reformula o Código de Ética Médica e se institui o Código Brasileiro de Defesa do Consumidor, ambosde muita importância na afirmação do direito do paciente à informação e ao consentimento livre.

1.3 - O Código de Ética Médica e o Código de Defesa do Consumidor na afirmação do princípio de consentimento livre e esclarecido

Vimos que, no processo de profissionalização da medicina, a instituição de um código de ética foi necessária, indispensável. Esse código teve sempre por referência aqueles princípios instituídos por Hipócrates e seus seguidores, e incorporou, mais recentemente, novos preceitos, diante das mudanças no contexto social, econômico e político.

O Código de Ética Médica dos Conselhos de Medicina do Brasil, em vigor, foi aprovado pela Resolução CFM n.º 1.246, em 8 de janeiro de 1988. Este Código foi elaborado pelo Conselho Federal de Medicina, depois de ouvidos os Conselhos Regionais, as entidades dos profissionais de saúde e os setores organizados da sociedade brasileira.

Os Conselhos de Medicina, órgãos fiscalizadores da prática médica, são em seu conjunto, "uma autarquia especial, dotada de personalidade jurídica de direito público, gozando cada um deles de autonomia administrativa e financeira" (França, 1994b: xviii).

Cabe ao Conselho Federal de Medicina votar qualquer alteração do Código de Ética Médica. Os Conselhos Regionais de Medicina, por sua vez, têm as seguintes atribuições: deliberar a respeito da inscrição dos médicos legalmente habilitados; manter um registro de profissionais numa determinada região; fiscalizar o exercício profissional e impor as devidas penalidades; velar pela preservação da dignidade e da independência do Conselho; apreciar e decidir sobre ética profissional, impondo as penas cabíveis; proteger e contribuir para o perfeito desempenho técnico e moral da medicina; e exercer atos para os quais a lei lhe confere competência. Cabe-lhes, ainda, elaborar proposta de regimento interno, expedir carteiras profissionais com valor legal de carteira de identidade, fiscalizar o exercício profissional de pessoa física e de pessoa jurídica de direito público ou privado, criar Delegacias Regionais e Comissões de Ética nos estabelecimentos de saúde públicos ou privados em sua jurisdição e expedir normas ou resoluções para o pleno cumprimento do Código de Ética Médica (França, 1994b).

Vale ressaltar que o Código de Ética Médica não se limita apenas aos preceitos morais, mas diz respeito a aspectos penais, civis e administrativos. Essa ressalva é importante, como veremos adiante, porque a incorporação do consentimento esclarecido ao Código de Ética vai ter que, necessariamente, acompanhar ditames de natureza jurídica (19).

No Capítulo III do Código, o da "Responsabilidade Profissional" explicita-se o conjunto de deveres e obrigações a que o médico se sujeita e cujo não cumprimento o leva a sofrer as consequências impostas no próprio Código.

Os artigos 42 e 43 desse Capítulo buscam referenciar a prática médica à legislação do país. Lê-se, por exemplo, ser vedado ao médico " praticar ou indicar atos médicos desnecessários ou proibidos pela legislação do país"(Artigo 42) e "Descumprir legislação específica nos casos de transplantes de órgãos ou tecidos, esterilização, fecundação artificial e abortamento" (Artigo 43) (Conselho Fedral de Medicina, 1998:62).

No primeiro artigo citado acima fica claro que o consentimento do paciente só legitima o ato médico necessário e idôneo. Cabe lembrar, no entanto, que o aperfeiçoamento dos exames genéticos, por exemplo, impõe dificuldades para a observância desse artigo. Pode-se citar a cirurgia de ablação de seios, a pedido da paciente, após o resultado do exame genético indicar probabilidade de ocorrência de câncer (Sfez, 1996:62).

No artigo 43, por sua vez, explicitam-se os casos onde a legislação deve ser observada. O abortamento é previsto no Código Penal Brasileiro, nos artigos 125, 126, 127 e 128. Este último artigo (128) prevê que o médico não será punido nas seguintes eventualidades: I - se não há outro meio de salvar a vida da gestante; II - se a gravidez resulta do estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal (França, 1994a: 313).

Nos princípios gerais da resolução CFM n.º 1.358/92, que adota as Normas Éticas para Utilização das Técnicas de Reprodução Assistida, consta o pré-requisito do consentimento esclarecido "obrigatório e extensivo aos pacientes inférteis e doadores. As informações devem também atingir dados de caráter biológico, jurídico, ético e econômico. O documento de consentimento esclarecido será em formulário especial e estará completo com a concordância por escrito da paciente ou do casal infértil (França, 1994b: 45).

No Capítulo IV (Direitos Humanos), a doutrina do consentimento esclarecido é explicitada como norma ética do bom exercício profissional. Lê-se, no artigo 46 ser vedado ao médico "efetuar qualquer procedimento médico sem o esclarecimento e o consentimento prévios do paciente ou de seu responsável legal, salvo em iminente perigo de vida" (Conselho Fedral de Medicina, 1998:11).

Segundo este artigo, o ato de informar o paciente e de lhe solicitar consentimento constitui obrigação do médico. Em tese, portanto, a ausência de informações suficientes ao paciente ou aos seus representantes legais, sobre riscos ou resultados, pode caracterizar infração ética ou legal.

Para o ato do consentimento, o paciente deve receber esclarecimentos e estar livre de qualquer tipo de constrangimento ou coação. Esse aspecto da doutrina do consentimento livre e esclarecido é explicitado no artigo 48 do Código, onde se veda ao médico "exercer sua autoridade de maneira a limitar o direito do paciente de decidir livremente sobre sua pessoa ou seu bem-estar" (França, 1994b:51).

Desta forma, salvo nos casos declarados de perigo de vida, a intervenção do médico no sentido de limitar o direito do paciente em decidir livremente sobre sua saúde não encontra justificação no Código de Ética. O constrangimento à autodeterminação do indivíduo é previsto como crime no Código Penal Brasileiro (artigo 146). Por conseguinte, se, apesar da objeção e recusa do paciente, o médico insistir no procedimento, ele estaria infringindo não só a norma ética de sua profissão como também lei instituída.

O princípio de autodeterminação também é explicitado no artigo 56 do Código de Ética Médica, onde se declara ser proibido ao médico "desrespeitar o direito do paciente de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente perigo de vida" (Conselho Federal de Medicina, 1998:12).

Seria interessante retomarmos a discussão acerca do modelo de decisão na prática médica. Segundo a leitura do artigo 56, o paciente é quem deve tomar as decisões sobre s sua própria saúde, em princípio. Veremos no capítulo seguinte, entretanto, que nos casos de conflito de decisões, o médico deve assumir a responsabilidade de esclarecer o máximo possível seu paciente sobre as consequências das decisões em pauta. O ideal, nestas situações, seria, então, "um acordo eticamente defensável entre ele (o médico), o paciente e/ou a família até chegar-se a uma solução em que o paciente seja o mais favorecido" (França, 1994b: 62).

No que diz respeito à informação necessária para o exercício da autodeterminação do paciente, o Código de Ética Médica explicita algumas normas. No artigo 59, se proibe ao médico "deixar de informar ao paciente o diagnóstico, o prognóstico, os riscos e objetivos do tratamento, salvo quando a comunicação direta ao mesmo possa provocar-lhe dano, devendo neste caso, a comunicação ser feita ao seu responsável legal" (Conselho Federal de Medicina, 1998:12).

Neste artigo se buscou conciliar o direito do paciente em saber a verdade com o critério profissional que estabelece se o paciente tem ou não condições de receber as informações. Cremos existir uma tendência de valorização do critério profissional em detrimento da vontade do paciente de conhecer a avaliação do médico sobre sua situação. Essa tendência tende a ser revertida na medida em que os pacientes, cada vez mais, se organizam e cobram seus direitos nos fóruns competentes.

As informações médicas devem constar em registros próprios (20), e o artigo 69 estatui que é vedado ao médico "deixar de elaborar prontuário médico para cada paciente" (Conselho Federal de Medicina, 1998:13). Estes registros, por sua vez, devem estar ao alcance do paciente, conforme estabelece o artigo 70, em que se veda ao médico "negar ao paciente acesso ao seu prontuário médico, ficha clínica ou similar, bem como deixar de dar explicações necessárias à sua compreensão. Salvo quando ocasionar riscos para o paciente ou para terceiros"(Conselho Federal de Medicina, 1998:13). Nessa mesma linha de reafirmar o direito do paciente à informação, o artigo 71 veda ao médico "deixar de fornecer laudo médico ao paciente quando do encaminhamento ou transferência para fins de continuidade do tratamento, ou na alta, se solicitado"( Conselho Federal de Medicina, 1998:13).

Da leitura desses artigos apreende-se que o Código buscou fixar as normas mínimas para a observância da doutrina do consentimento livre e esclarecido e, por conseguinte, do princípio de respeito à autonomia do paciente.

No Capítulo XII, o consentimento livre e esclarecido é, explicitamente, um pré-requisito ético para a execução de pesquisa em seres humanos (artigos 123, 124, 125 e 128). E quando o Ministério da Saúde reformulou as normas específicas para a experimentação em seres humanos através da Resolução 196/96, houve a preocupação de definir o conceito de consentimento livre e esclarecido e de incorporar os princípios de beneficência, não-maleficência e justiça (Brasil, 1996).

O Código de Ética Médica, portanto, buscou acompanhar a tendência, da prática médica dos países ocidentais, de incorporar o princípio do respeito à autonomia do paciente, através do consentimento livre e esclarecido, às normas éticas que definem a prática profissional. Isto não quer dizer, entretanto, que a prática do consentimento livre e esclarecido e do respeito à autonomia do paciente esteja integrada ao exercício profissional cotidiano do médico.

O dever do médico de informar seu paciente e de lhe solicitar o consentimento também está presente no Código de Defesa do Consumidor.

Quando a pessoa se sente doente e recorre aos serviços de saúde, firma-se uma relação de consumo.

Não se deve reduzir as complexas relações que se estabelecem entre médico e paciente ao simples consumo de um determinado serviço, sob pena de se reduzir, também, o princípio de respeito à autonomia do paciente à uma mera relação contratual. Mas o paciente, também, é um consumidor de serviços de saúde. E a análise da legislação que regula esse âmbito de relações reforça a perspectiva aqui assumida de que os direitos do indivíduo tendem a considerá-lo singularmente, de acordo com a situação concreta de vida.

Para os autores do anteprojeto do Código Brasileiro de Defesa do Consumidor toda e qualquer relação de consumo: a) envolve basicamente duas partes bem definidas: de um lado, o adquirente de um produto ou serviço ("consumidor"), e, de outro, o fornecedor ("produtor/fornecedor"); b) tal relação destina-se à satisfação de uma necessidade privada do consumidor; c) o consumidor, não dispondo, por si só, de controle sobre a produção de bens de consumo ou prestação de serviços que lhe são destinados, arrisca-se a submeter-se ao poder e às condições dos produtores daqueles mesmos bens e serviços. (Grinover, 1995).

Na linguagem do Código, o paciente é o consumidor para quem se presta um serviço; o médico, o fornecedor que desenvolve atividades de prestação de serviços; e o ato médico, uma atividade realizada mediante remuneração.

"Consumidor" é definido no Código (artigo 2º) como sendo "toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final" (Grinover, 1995:26).

No artigo 6º explicitam-se os direitos do consumidor. Destacamos os três primeiros, pertinentes ao objeto de nossa pesquisa. Assim,

I - a proteção da vida, saúde e segurança contra riscos provocados por práticas no fornecimento de produtos e serviços considerados perigosos ou nocivos;

II - a educação e divulgação sobre o consumo adequado dos produtos e serviços, asseguradas a liberdade de escolha e a igualdade nas contratações;

III - a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade e preço, bem como os riscos que apresentem;

O primeiro item do artigo 6º pode ser analisado tendo por contexto as inúmeras possibilidades de intervenção diagnóstico-terapêuticas que a medicina atualmente dispõe. Muitas delas poderiam ser classificadas na categoria de "serviços considerados perigosos", e seus possíveis benefícios para o paciente devem ser avaliados de acordo com os riscos inerentes à intervenção.Mas a quem cabe avaliar? No nosso entendimento, ao paciente.

Os itens II e III parecem trazer luz a essa questão. Sob o ponto de vista do consumidor, ele tem direito à informação e à liberdade de escolha. Na avaliação dos riscos e benefícios de uma determinada ação médica, é razoável afirmar que o usuário direto, o paciente, também deve participar.

Este mesmo artigo 6º, inciso VIII, estatui serem direitos básicos do consumidor a facilidade da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiência. Na avaliação de França, residiria neste inciso a maior inovação trazida pelo Código, pois "se um paciente alega erro médico, a responsabilidade da prova para defender-se é do facultativo, por considerar-se difícil o usuário pré-constituir prova sobre seus direitos, até porque ele, no momento da relação, está em sua boa fé" (França, 1994a:109).

Para Grinover, essa investidura do cidadão na qualidade de consumidor seria uma característica desse final de século XX "em função de um modelo novo de associativismo: a sociedade de consumo (mass consumption society ou Konsumgesellschaft), caracterizada por um número crescente de produtos e serviços, pelo domínio do crédito e do marketing, assim como pelas dificuldades de acesso à justiça" (Grinover, 1996:6).

A incorporação dos princípios de respeito à autonomia e do consentimento livre e esclarecido em leis específicas e em reformulações do Código de Ética Médica (21) reflete um movimento maior das sociedades ocidentais no debate sobre a ética.

Com efeito, um crescente interesse, a partir dos anos 60, em questões de ética aplicada em saúde vai estimular a reflexão filosófica sobre a pertinência dos princípios de respeito à autonomia e de consentimento livre e esclarecido em um contexto secular e pluralista de valores morais. Esta reflexão filosófica tornar-se-á tarefa primordial da bioética e acabará por remeter ao âmbito da ética médica a necessidade de se deslocar o foco exclusivo no princípio de benefiência para incorporar os princípios de respeito à autonomia e do consentimento livre e esclarecido. Abre-se um período que Pellegrino (1995) denominou de "metamorfose da ética médica".


10 - Os escritos, atribuídos a Hipócrates e seus discípulos, começaram a ser reunidos na Biblioteca de Alexandria, a partir do século III A.C. (Souza, 1981). Como destaca Entralgo (1972), os responsáveis pela compilação desses documentos, realizaram à seleção com reduzido espírito crítico, reunindo um conjunto de extratos, resumos e fragmentos distintos a outros considerados legítimas obras-primas.

11 - Entende-se por juramento um compromisso solene perante Deus, pondo-o por testemunha e aceitando seu castigo em caso de transgressão. No juramento hipocrático, os deuses em questão eram Apolo (filho de Zeus, considerado deus da profecia com poderes de cura), Asclépio ou Esculápio (filho de Apolo, médico que curava doentes e ressuscitava os mortos), Higéya e Panacéia.

12 - No início da Idade Média, os médicos eram, em geral, clérigos organizados em ordens monásticas e, desde o século VIII até o século XII, "o hospital monástico representou quase a única instituição na Europa, cuja função principal residia no cuidado ao doente" (Rosen, 1994: 68).

13 - No ano 431, o Concílio de Éfeso rejeitou e condenou a doutrina pregada pelo Arcebispo Nestor que negava a divindade de Cristo, Os seguidores de Nestor, denominados como "nestorianos", foram perseguidos, dispersando-se rumo ao Oriente. Alguns destes nestorianos, sob a proteção do Rei da Pérsia, dirigiram-se para a cidade de Gondishapur onde se constituiu um dos mais famosos centros de cultura helênica. No ano de 636, os árabes invadiram a Pérsia, conservando e protegendo a atividade intelectual e Gondishapur acabou por se constituir o principal e mais famoso centro de ensino médico (Souza, 1981; Antunes, 1991).

14 - A sociologia das profissões define profissão tendo por critérios principais a auto-regulação profissional, o monopólio da prestação de serviços, a adoção de um código de ética e a adoção de um sistema de conhecimento teórico e complexo a ser transmitido por um aprendizado longo e, por vezes difícil (Freidson, 1978; Machado, 1996a)

15 - No processo em que a medicina passa de uma atividade onde o médico competia com curandeiros, religiosos e charlatães a uma profissão que detém monopólio de conhecimento e proteção legal, o Estado, mais que o próprio conhecimento médico, foi fundamental. Como ressalta Coelho, até meados do século XIX, a medicina "ainda era uma das várias superstições oferecidas no mercado, embora uma superstição com prestígio dos títulos acadêmicos e as vantagens e privilégios de um monopólio ou quase monopólio obtido do Estado" (Coelho, 1995:60).

16 - Deve-se distinguir a prática médica da prática de pesquisa envolvendo os seres humanos. Nesta última, "os sujeitos da pesquisa não coincidem necessariamente com os beneficiários das pesquisas. Estes são claramente idenficáveis e não existe proporcionalidade entre riscos e benefícios" (Kottow, Apud Schraam, 1998:6). Sobre a influência do Código de Nuremberg nos estatutos éticos e nas regulações institucionais pós-Segunda Guerra Mundial envolvendo experimentação em seres humanos ver: ANNAS, G. J. and GRODIN, M. A. (Eds.) 1992. The Nazi Doctors and the Nuremberg Code: human rights in human experimentation. New York: Oxford University Press.

17 - Eugenia pode ser definida como a aplicação dos princípios da genética e hereditariedade para o aperfeiçoamento da raça humana. A questão da eugenia emerge como principal argumento para se criticar as práticas e tecnologias médicas que parecem ser moralmente controversas. Como afirma Neri, "[t]axando-as como eugenia, significa projetar sobre estas tecnologias o espectro dos crimes nazistas, do autoritarismo e da discriminação" (Neri, 1998:10).

18 - O texto do Código de Nuremberg utiliza a expressão consentimento voluntário (voluntary consent) e não consentimento esclarecido (informed consent).

19 - Na Constituição Federal, por exemplo, em seu artigo 5º afirma-se que "todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantido-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: <...>;
II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude da lei" (Brasil, 1997:16-17).
A Constituição Federal, portanto, prevê a liberdade do indivíduo a não se sujeitar a qualquer obrigação que não seja de sua vontade ou que não esteja prevista em lei.

20 - No parecer CFM 493/87 é definido que os registros nos quais devem constar as informações médicas sobre o paciente são os seguintes: a) ficha de anamnese; b) ficha de evolução; c) ficha de prescrição terapêutica; e da ficha de registro de resultados de exames laboratoriais e de outros métodos diagnósticos auxiliares. Estes registros devem fazer parte do Prontuário Médico(CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, 1994: 198).

21 - Sobre as diferentes versões do Código de Ética Médica brasileiro ver: MARTIN, L. M. 1993. A Ética Médica diante do Paciente Terminal. Aparecida-São Paulo: Santuário.

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